Cada vez mais brasileiros se mudam para a Irlanda para trabalhar em um mercado com mão de obra interna escassa: a indústria da carnetigrinho betano, que abastece também outros países europeus.
Esse movimento é acompanhado de uma preocupação crescente com abusos trabalhistas —um problema relatado não só por organizações que estudam o setor, mas evidente em comunicações internas do governo brasileiro.
A BBC News Brasil teve acesso a um conjunto de telegramas da Embaixada do Brasil em Dublin que revelam preocupação com migrantes brasileiros sujeitos a:
fortune tiger "Condições de trabalho precárias", "insalubres" e "abusivas por parte dos empregadores"; "Desempenhar múltiplas funções no ambiente de trabalho, em condições de segurança precárias"; "Turnos de trabalho prolongados", às vezes com "salário inferior ao mínimo". Lá ForaOs relatos da embaixada apontam que "a maioria dos brasileiros nessa situação teme protestar" e, como consequência, serem "obrigados, junto com seus familiares, a voltar imediatamente para o Brasil".
Essas comunicações, obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação, ocorreram em 2024, e apontam ainda uma interpretação de que "não há apetite governamental" no país para um monitoramento mais sistemático das empresas.
Procurada pela reportagem, a Meat Industry Ireland (MII), associação que representa diversas empresas de processamento de carne bovina na Irlanda, disse que todos os funcionários de empresas associadas à organização são "altamente valorizados e tratados de forma igualitária por seus empregadores" e que "refutam fortemente as inferências feitas".
Já a Comissão de Relações de Trabalho (WRC, na sigla em inglês), órgão que fiscaliza questões trabalhistas em empresas na Irlanda, diz que não comenta críticas feitas por terceiros (veja mais detalhes abaixo).
Ao longo de três meses, a reportagem conversou com mais de dez trabalhadores brasileiros em diferentes cidades da Irlanda e identificou exemplos concretos dos problemas relatados nos documentos oficiais.
Um deles precisou amputar um dedo da mão, após se machucar exercendo uma função para a qual conta que não estava treinado (leia abaixo).
Outros relatos frequentes ouvidos pela BBC News Brasil envolvem remunerações menores do que de colegas de outras nacionalidades na mesma função, além de diversos casos de humilhação no ambiente de trabalho.
Apesar desses depoimentos, parte dos entrevistados diz que vê algumas das violações como uma espécie de sacrifício para obter condições de vida melhores no futuro.
'Favoritos'?Brasileiros são considerados favoritos nesse setor, segundo recrutadores e especialistas em imigração ouvidos pela reportagem, por uma série de fatores: trabalham muito, têm experiência prévia em frigoríficos no Brasil e, como outros imigrantes que dependem do visto de trabalho, têm receio de demonstrar insatisfação e perder oportunidades.
O número de permissões de trabalho a brasileiros em diversas áreas do mercado de trabalho nunca foi tão alto quanto nos últimos 3 anos, segundo dados do governo irlandês.
Só em 2024, foram 4,5 mil novas autorizações. Há dez anos, esse número não chegava a 1 mil por ano.
Ao olhar especificamente para o mercado do processamento da carne, de 8 mil autorizações de trabalho emitidas desde 2020 pelo governo irlandês para pessoas de fora da União Europeia e do Espaço Econômico Europeu (EEA), 66% foram para brasileiros.
O Itamaraty estima que há 80 mil brasileiros na Irlanda, e diz que o número é uma avaliação aproximada, que inclui todos os brasileiros residentes, ainda que temporariamente, e independentemente da situação migratória.
Poucas semanas após mudar para a Irlanda para trabalhar em um frigorífico, o tocantinense Guilherme dos Santos, hoje com 34 anos, sofreu em 2021 um acidente que levou à amputação de um dedo.
"Sofri um acidente, com dois ou três meses de serviço. Fui atirar para matar um animal, ele mexeu com a cabeça, e a arma disparou na minha mão. Atingiu o tendão na palma da mão e tive que passar por três cirurgias. Duas foram para tentar reconstituir, mas tive que amputar um dedo", contou à BBC News Brasil.
paraibana avalSantos conta que perdeu a força na mão —além do mindinho lesionado, também teve fratura no anelar.
Ele diz que inicialmente teve apoio da empresa com os tratamentos. Depois, decidiu colocar o caso na Justiça —ele conta que não tinha o treinamento para trabalhar com a arma usada no processo de sangria do animal.
Aposte no que você acredita |ZA9BET | Operador AutorizadoHoje ele atua na área de limpeza de carcaça na mesma empresa, e pensa em voltar para o Brasil após cumprir o prazo para ter visto de residência na Irlanda.
Mas quer trabalhar em outra área: "Sinto muita dor. Não quero frigorífico mais". Questionado se valeu à pena ir para a Irlanda, Santos diz que "com certeza". E emenda: "Mas ninguém em sã consciência vem para passar muito tempo", apesar de acrescentar que considera que as experiências dos imigrantes são variadas.
O advogado brasileiro baseado em Dublin Bruno Borges atua há quatro anos em causas na justiça irlandesa que envolvem acidentes que geram lesão, como a de Santos.
Borges, do escritório Murray Flynn Solicitors, diz que a maioria de seus clientes em casos de acidentes ocorridos em ambiente de trabalho são trabalhadores da indústria de processamento de carne.
"Com trabalho pesado e por irregularidades, alguns brasileiros acabam se lesionando", diz. "Não tenho mais clientes porque alguns dependem do visto e ficam com medo de entrar com ação e sofrem calados para o resto da vida."
'Aprende ou te mando de volta pro Brasil'Os profissionais brasileiros contratados por empresas na Irlanda já possuem experiência prévia como desossadores, cortadores, operadores de linha, limpadores, dentre outras funções.
Uma das etapas de seleção, inclusive, envolve a gravação de um vídeo do profissional no processo de desossar um animal abatido.
No entanto, um primeiro "tombo", segundo os relatos ouvidos pela reportagem, acontece quando alguns deles descobrem que o visto de trabalho recebido não é o equivalente a um cargo com essa experiência, para que possam pagar menos, ou quando, na prática, acabam trabalhando em um posto no qual não têm treinamento.
Lucas dos Anjos, de 27 anos, se mudou para Irlanda em 2020, após ser selecionado por uma entrevistadora no Brasil. A empresa pagou passagem e hospedagem, além de suporte inicial, como acomodação, e um adiantamento de € 100 (R$ 620).
Inicialmente destinado à desossa, Lucas acabou trabalhando no abate. "Logo na recepção, o pessoal já falava da fama dos supervisores de serem tiranos, mal-educados."
Ele chegou em um grupo com 20 pessoas e que elas tinham de aprender pelo menos três funções diferentes. "Se a pessoa nunca trabalhou no abate, por exemplo, é difícil de aprender. E então o supervisor dizia: ou você aprende, ou te mando de volta para o Brasil."
Depois de desentendimentos e muita frustração, Lucas conta que deixou a empresa após um ano. Conseguiu outro trabalho em um frigorífico menor, que depois descobriu que era conhecido por colegas brasileiros como "pela jegue" por suas condições ainda mais degradantes.
"Não tinha hora para acabar. Era um trabalho escravo. Já tive de trabalhar mais de 12 horas em um dia. Se fosse embora, era punido depois e não nos chamavam pra trabalhar", diz, em referência ao pagamento semanal.
Hoje ele avalia que as empresas perceberam o valor do brasileiro como uma mão de obra barata e esforçada. "Sabem que o euro vale muito no Brasil e, por isso, qualquer coisinha que o brasileiro recebe, ele se acostuma."
Outro problema, relata, era a falta de segurança. "Tinha muitos acidentes. Era comum ver gente que sofreu corte de faca, que passava mal. E não tinha gente suficiente para primeiros socorros. Minha virilha inchou uma vez porque estava trabalhando no couro. Arrastava um couro sozinho que pesa 50 kg, o dia inteiro."
Lucas conta que, após ter se juntado a colegas para pedir melhorias à empresa, acabou demitido. Ele abriu um processo contra os empregadores e conseguiu, em 2024, uma indenização.
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'Medo de demissão'O temor da demissão após reclamação por melhorias é uma das preocupações relatadas nos documentos da embaixada.
Os telegramas mostram que a comunidade que trabalha em frigoríficos é vista pela diplomacia brasileira como "especialmente vulnerável" por uma combinação de fatores, que inclui falta de domínio do inglês, relativo isolamento no interior do país (onde estão as empresas) e "limitada capacidade de mobilizar-se em defesa dos seus interesses."
Em resposta, o governo irlandês lançou no fim de 2024 uma pesquisa com trabalhadores do setor, cujos resultados ainda não foram divulgados.
"A pesquisa certamente terá sido motivada por uma série de incidentes envolvendo direitos trabalhistas na indústria da carne irlandesa nos últimos anos", disse a embaixada brasileira à reportagem, em nota. "A Embaixada vem atuando há muitos anos nesse tema, algumas vezes acompanhando negociações entre trabalhadores brasileiros e as empresas, em outras exigindo das autoridades irlandesas medidas contra casos abusivos."
As violações trabalhistas na Irlanda são fiscalizadas por um órgão estatal independente, a Comissão de Relações de Trabalho.
O relatório mais recente aponta que o órgão visitou seis empresas da carne em 2023 e identificou irregularidades trabalhistas em cinco delas. No ano anteriortigrinho betano, 15 de 20 empresas fiscalizadas tinham falhas.